Para ler sem urgências.
É muito difícil ser urbanista e dizer para as pessoas se apropriarem da cidade quando a cidade é repulsiva com as pessoas (note que eu me chamei de urbanista, porque bastou eu entregar o TCC semana passada para me considerar formada sem nem mesmo ter passado pela banca ainda). Tenho caminhado cada vez menos desde 2020, associado a um movimento de andar menos de transporte público e um medo interno crescente da violência urbana. Esses dias resolvi andar até a academia, que fica no final da rua, ao invés de ir de carro ou bicicleta, e sentir a sensação de estar na cidade. Pretendia curtir o passeio, prestar atenção aos detalhes no caminho, cruzar com o inusitado. Na verdade, fui apressada por todo o trajeto tentando me livrar do sol e com receio de sofrer um assalto. Nessas condições, acho que sou um péssimo exemplo de urbanista.
“Eu não sei quando foi que deixei de andar pela cidade. Provavelmente, efeito da pandemia. Antes eu andava muito, e sempre. Mas sinto que tenho caminhado cada vez menos” Tá todo mundo tentando.
Essa história de andar pela cidade sempre me agradou, mas depois que entrei na faculdade se tornou ainda mais interessante, porque o conhecimento acabou enriquecendo os passeios. No primeiro período conheci o termo flâneur e fiquei obcecada. É basicamente o nome que se dá para um andarilho errante do urbano. Na época, gravei um vídeo para um trabalho com essa temática, e até escrevi no blog sobre um outro artigo que fiz. Meu prazer se tornou flanelar pelas cidades que conheço, pelas cidades por onde viajo, por cidades que ainda nem conheci. Gosto de encarar todas elas como Marco Polo no livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, descartando o óbvio e me atendo ao espírito do lugar e todas aquelas coisas que o tornam único.
Andar em Natal não é como andar em Nova Iorque ou Paris, como as protagonistas de filmes dos anos 80, porque não é uma cidade que nos convida, mas ainda assim tem seus encantos. Meus bairros favoritos para caminhadas são os antigos, que guardam traçados mais atrativos aos pedestres, ainda que as calçadas tenham sido apertadas para a introdução dos automóveis. Adoro caminhar em Petrópolis, com suas árvores frondosas e arquitetura modernista, na Ribeira, cujos becos sempre revelam algo curioso, e na Cidade Alta, sendo minha calçada favorita especificamente o trecho da Avenida João Pessoa onde se vende biscoito trovo em uma loja com menos de dois metros de frente. Por outro lado, odeio caminhar próximo a avenidas pavimentadas e de tráfego intenso (esperar o 73 nas paradas do Midway ou Natal Shopping são torturas térmicas e psicológicas) e nas ruas cheias de muros altos e cercas elétricas dos bairros nobres da zona sul.
Eu já me perdi andando por Lisboa, certa vez, na minha primeira e única viagem internacional. Foi um misto de medo e empolgação errar o caminho de volta para o hotel (eu estava sozinha nessa andança) e descobrir um parque tímido durante a aventura. Ainda me perco por essas ruas na memória. Também vaguei sem mapa pelo centro de João Pessoa, encontrando as vistas do Rio Sanhauá, pelas pontes do Recife Antigo, e tantos outros lugares. Perambulei pelas ramblas de Barcelona através das palavras de Zafón e até por metrópoles impossíveis como Birnin Zana. Em cada cidade, eu me perco entre as esquinas e colho as histórias que vão se acumulando como poeira no meio-fio.
Aprecio o passeio até mesmo em Natal, tão bela e tão rude, que me afasta das suas ruas mas eu insisto em ocupar (por paixão).
Essa semana eu me torno Arquiteta e Urbanista (uau, nem acredito) e depois de cinco anos nisso, digo que falar e viver a cidade nunca perde a magia. Você pode até ser alguém sem vasto conhecimento área, não saber o que dizem os grandes teóricos, mas ainda será capaz de participar e apreciar discussões sobre cidades porque as vivencia na prática todos os dias. Eu gosto muito de pensar no urbano como algo além das ruas, dos prédios, dos sinais, das placas, dos munumentos. Eu encaro quase como uma poesia, tentando encontrar a magia nas relações que as pessoas constroem entre si e com o lugar. Talvez porque seja aí que meu lado arquiteta e urbanista encontra minha persona escritora. No fim das contas, a cidade nada mais é que uma crônica que se escreve a muitas mãos.
“I love shots of women walking through cities in films. Especially in 80s New York (Meryl Streep in Heartburn, Meryl Streep in Falling in Love, Meryl Streep in Kramer Vs Kramer, Amy Irving in Crossing Delancey, Michelle Pfeiffer in Frankie & Johnny, even Diane Keaton in Baby Boom), I like their voluminous macs and woven bags [...] I am very specific about the kind of walking. It has to be on a pavement. I don’t need the jeopardy of cars, nor do I need the cliche of someone “woah-ing” a cab as it almost runs them down. I like a pavement, shop fronts and other pedestrians, completely ordinary walking. Some of these scenes happen in less salubrious parts of the city. The grubby streets that would make your parents’ uneasy if they knew how often you took them as a shortcut. She will walk down them with her mind somewhere else. Ignoring the threat of the men who pass her. She will be ordinary, immersed in the practical aspects of her own life and my heart will skip a beat at the sight of her, in possession of her own life, in the city, alone” Literary Hub.
Prolongando essa viagem interestelar:
(catei alguns desses links, como sempre, na news Queria ser grande, mas desisti. outras recomendações e citações eu só acumulei ao longo dos meses na caixa de email ou nos salvos do twitter. pelo menos agora tenho um banco de links pra soltar rs)
Maternidade no capitalismo: nasce uma mãe, nasce um manual - sobre como “ser uma mãe perfeita” é mais uma das pressões do capitalismo sobre nós.
Escrever como quem não é lida - sobre medo de escrever e compartilhar (me identifiquei horrores).
.não - sobre impôr limites.
Até a próxima aventura intergaláctica!
Oi Ana, eu tambem acabei de chegar e tô correndo pra ler seus textos! Hahahaah parabéns pela formatura!!!! Onde você estudou? Eu também sou arq&urb e professora e aspirante à escritora, temos muitas figurinhas pra trocar ♡
oiii
acabei de chegar e já tô correndo ver os outros textos!! aliás, além de parabenizar pela conclusão do curso e pela escrita maravilhosa, eu queria indicar o livro que é minha obsessão atual: flâneur, da editora fósforo, que fala sobre a história das mulheres que ousam andar pela cidade, você vai amar a leitura!!!