#17 o jeito que ela olha para mim
sobre crises no relacionamento, compras questionáveis e sonhos ruins
Para ler sem urgências.
Acho que é uma boa data para contar essa história. Eu e Luan, há um dois meses, entramos em uma loja de artigos místicos e religiosos porque eu queria comprar incensos. Eu andava (mais) ansiosa nessa época, com insônia frequente, e me recomendaram alguns aromas para dormir melhor. Adentrei a loja, rodeada por imagens de santos e divindades, com o cheiro pungente de mirra, e fui até as prateleiras no final, onde haviam incensos de todos os tipos para todas as finalidades. Luan me seguiu, e bem atrás encontramos um expositor repleto de estátuas de corujas - ele é um grande fã e coleciona corujas de todos os tamanhos no quarto.
Escolhi as minhas compras e vi que Luan também tinha escolhido um item para levar. Era uma estátua de coruja de uns 15cm, preta e com detalhes prateados. Sem dúvidas, destacava-se entre as demais pela sua imponência e aparência espectral. Levamos para casa e ele colocou na estante, onde a estátua também parecia estar em evidência. Sempre que eu estava no quarto, olhava para ela. Era como se nossos olhares sempre se cruzassem. E ela me olhava de volta. Antes de dormir, virei de costas. Luan trancou a porta e se deitou comigo, mas ele não parecia se incomodar com os olhos brilhantes da estátua sobre nós.
No dia seguinte, começaram os eventos adversos. Dormi bem mal naquela noite, com sonhos agitados e angustiantes, mas eu já não vinha dormindo bem há um tempo. A porta do quarto estava destrancada, mesmo nós dois tendo certeza de termos trancado. O mesmo aconteceu com a janela. Disctimos algumas teorias, mas não nos prolongamos, apenas decidimos que nossa mente havia nos enganado. Meu namorado é profundamente cético e não acredita sequer no que ele vê. Então, ele me levou para minha casa e nós nos despedimos. Luan trabalha em regime de escala, duas semanas em terra, duas semanas no mar, portanto, só voltaríamos a nos encontrar em quinze dias. Apesar do aperto da saudade, foi um período bem pacífico para mim, sem que nada de estranho me ocorresse.
Quando ele voltou de viagem, fui revê-lo para passarmos um tempo juntos. Nosso reencontro é sempre emocionante, porque uma quinzena é muito tempo quando se gosta mesmo de alguém. Fomos para o quarto dele trocar carinhos e conversar sobre nós dois. Logo que entrei, senti o magnetismo da coruja e olhei para a estante. Seus olhos pareciam mais brilhantes que da última vez, embora a face estivesse mais ameaçadora. Desviei o olhar, mas sua presença parecia pesar sobre o local. Ignorei a sensação e me deitei com Luan, deixando-o me envolver. Conversamos até cair o sono, o que não demorou muito, porém acordei poucas horas depois com sonhos turbulentos, e o sentimento de que não estávamos sozinhos ali.
Em meus sonhos, situações de desespero me ocorriam. Ora eu estava em um lago de águas turvas sem tocar o chão, perdendo o fôlego enquanto tentava permanecer na superfície. Ora eu estava atravessando um abismo, sentindo meu corpo desequilibrar a cada passo e o vento gélido me fazendo tremer. Ora eu estava no quarto de Luan, sozinha deitada sobre a cama, com as cortinas e portas fechadas, e a sensação de que algo ou alguém estava cada vez mais perto, como se sua presença me oprimisse.
Pela manhã, relatei tudo o que estava acontecendo para o meu namorado, falei que sentia algo estranho sobre a coruja e sugeri que a gente colocasse ela em outro lugar. Mas, cético como é, Luan logo encontrou outras explicações e insistiu em deixar a estátua onde estava. Fiquei irritada, porque tinha sentimentos fortes de que algo não estava certo e queria que ele acreditasse em mim, mas relevei minha raiva e nós não tocamos mais no assunto. Nos dias seguintes, não fui à casa dele, pois estava ocupada com trabalho e faculdade, porém, foi só colocar os pés no quarto de novo que o mal-estar retornou, dessa vez bem pior.
De um modo que eu não sabia explicar, a coruja parecia ligeiramente maior e mais carrancuda toda vez que eu a encontrava. Seus olhos prateados brilhantes me fitavam com mais intensidade e de um jeito nada amistoso. Dormi, novamente, virada para a estátua, e acordei de madrugada com pesadelos ainda piores que a última vez, incluindo sombras e vultos que me perseguiram, como se estivesse tentando tomar conta de mim. Para a minha surpresa (e assombro), a coruja estava sobre a cadeira, do meu lado da cama, virada diretamente para mim, sem que ninguém a tivesse colocado naquele lugar.
Gritei desesperada. Meu namorado e minha sogra acordaram. Eles ficaram confusos com meu relato, mas a mãe de Luan concordou comigo que, por via das dúvidas, era bom se livrar da estátua. No entanto, ele estava estranhamente conectado àquele objeto e insistiu em mantê-lo consigo. Daquela vez, nós brigamos. Ele não entendia minha implicância com a coruja, não achava que nada daquilo tivesse relação com acontecimentos sobrenaturais, disse que era tudo fruto da minha imaginação e que eu estava exagerando. Por outro lado, eu já tinha certeza de que aquilo, seja lá o que fosse, já tinha afetado e corrompido nós dois.
Não fizemos as pazes. Dormi sozinha, no meu quarto, depois de relembrar orações que eu não fazia há anos e com a luz do abajur acesa. Achava que na minha casa estaria segura, longe daquela estátua maldita e, infelizmente, longe do homem que eu amava. Porém, eu tive novos pesadelos. Na verdade, ainda hoje não sei se estava sonhando ou acordada, porque tudo parecia extremamente lúcido, mas eu tento não acreditar que tenha sido real. Da minha cama, eu via os espelhos da penteadeira e do guarda-roupa pretos, e uma sombra muito alta sentada na cadeira da escrivaninha. Apesar de não ter rosto, eu sabia que ela me observava. E estava perto, muito perto. Quase que dentro de mim.
Acordei desesperada e fiquei encolhida nos lençóis chorando baixinho até amanhecer. Não quis contar nada para os meus pais. De manhã, fui conferir a cadeira e sobre ela estava a mochila que usei para sair durante a semana. Abri e, para minha surpresa, lá estava ela. A estátua de coruja, ainda mais grotesca. Parecia velha, enferrujada e horripilante. Não tive reação. Fiquei uns bons minutos paralisada, processando como aquele objeto tinha ido parar entre as minhas coisas. Não fui trabalhar naquele dia, porque não me sentia bem em deixar aquilo sozinho na minha casa e estava em pânico demais para levá-la comigo.
Antes que eu pudesse avisar a Luan sobre o ocorrido, ele apareceu na minha porta, com um semblante triste e pedindo desculpas por ter duvidado de mim. Disse que sonhou o mesmo pesadelo horrível e, quando acordou, a coruja havia sumido. Mas ele sabia que não tinha sido eu porque, antes de dormir, ela estava na sua estante. Aquela informação me arrepiou, e eu o assustei quando falei que ela estava comigo. Abracei-o apertado e nós choramos juntos.
Logo depois, colocamos a estátua em um saco preto e fomos à loja falar com o vendedor, que nos disse não se lembrar de ter efetuado aquela venda. Ele procurou no registro do caixa, e também não achou nenhuma venda com o valor informado, mas disse que, se estivesse no nosso lugar, queimaria logo o objeto para encerrar a história de uma vez por todas. E foi o que fizemos. Montamos uma pequena fogueira no quintal e assistimos o material derreter até não sobrar nada mais que um punhado de cinzas. Por via das dúvidas, jogamos os restos no mar, como quem vela alguém que se foi. Foi um ritual para que nós pudéssemos selar o fim de um pesadelo. À noite, dormimos tranquilos, sem sonhos inquietantes e sem vultos assustadores nos visitando de madrugada.
Porém, sempre que vejo uma coruja à espreita à noite, meu coração aperta e eu sinto que há caminhos que ainda estão abertos.
E nada disso aconteceu de verdade, claro. É só fanfic da minha cabeça (com base em fatos reais). Luan disse que a parte assustadora da história, quando dei a ideia, era a gente brigando no final haha mas está tudo bem entre nós. Ele realmente comprou uma coruja nova esses dias, mas ela é gente boa.
Feliz dia das bruxas! E feliz vitória do Lula! Vamos para frente, com coragem, enfrentar todos os monstros que o bolsonarismo criou.
Prolongando essa viagem interestelar:
Sei que estou atrasada no assunto, mas gostei muito dessa news sobre quiet quitting. No caso, eu adoro ler tudo que questiona a lógica neoliberal. Também adoro narrativas urbanas, por isso volta e meia estou recomendando os textos do Tá todo mundo tentando. E dessa vez é isto.
Até a próxima aventura intergaláctica!