Para ler sem urgências.
Era final de setembro quando ele tomou a estrada com destino ao litoral. Carregava consigo poucas roupas, dois frascos de ansiolítico e o panfleto que anunciava o resort onde pretendia se refugiar por alguns dias. Foi um ano difícil. Não encarava a viagem como um meio de escapar dos problemas, mas uma pausa programada para retomar o fôlego. Dirigiu por algumas horas até chegar, no fim de tarde, ao paraíso que o destino havia lhe indicado.
As pessoas na recepção eram simpáticas e levaram sua pequena mala até o chalé onde ficaria hospedado. Ele recebeu uma cartilha com inúmeras programações disponíveis no local, além dos horários em que eram servidas as refeições. Questionou sobre outras atividades para fazer no vilarejo, porém o funcionário se limitou a dizer, com um sorriso largo, que a propriedade ficava longe demais de qualquer outro lugar para que fosse prudente realizar passeios externos.
Quando se viu sozinho no quarto, reparou que o ambiente era bastante simples, com móveis em madeira rústica e janelas com abertura para o jardim. Procurou entre suas coisas o isqueiro e a carteira de cigarro, itens que estava certo de que tinha guardado na bagagem, mas não encontrou. Também sentiu falta de outros objetos, como lâmina de barbear e frascos de remédio. “É claro que esqueci” murmurou para si mesmo. Ele andava distraído e desatento, com a mente mergulhada em aflições e essa condição o fazia ter lapsos de memória. Conformou-se e trocou de roupa para o jantar.
Caminhou alguns minutos até o restaurante, encontrando alguns outros hóspedes pelo caminho. Pareciam todos tão solitários quanto ele. Alguns conversavam em pequenos grupos, mas eram diálogos sem ânimo e quase em tom de sussurro. Serviu-se e sentou-se sozinho. Os funcionários do resort os observavam de longe, vestidos em seus uniformes alvos e com a expressão serena de sempre. De alguma forma, aquele clima de paz começava a irritá-lo. Estava farto de teatros e há bastante tempo se recusava a participar de encenações cotidianas.
Ao retornar para o chalé, notou que alguém havia deixado confeitos de cortesia na mesa de cabeceira, além de uma garrafa d’água. Nunca foi chegado a doces. Ignorou o presente e se acomodou para dormir depois daquele dia exaustivo de viagem. Antes de desligar as luzes, puxou a fotografia que levava no bolso. Era um retrato de sete anos atrás. Elisa sorria no primeiro plano, e ao fundo se via o quintal da primeira casa onde moraram juntos. Sentia sua falta. Perguntava-se onde ela estaria agora.
O sono não veio de imediato. Na verdade, ainda que ele estivesse cansado, não se sentia pronto para dormir. Um sentimento de alerta o incomodava, era a sensação de estar sendo observado. Seu relógio marcava 23:18 quando resolveu ir à janela verificar se havia algum hóspede intrometido estava à espreita. Não havia ninguém. Fechou as cortinas e voltou para a cama. Alguns minutos depois, ouviu gritos do lado de fora. Levantou-se de sobressalto e foi à janela novamente verificar o que se passava. Tentou acender a luz do quarto, mas nada aconteceu. Fechou as cortinas mais uma vez e voltou para a cama consternado, resmungando consigo mesmo por ter acreditado naquela história de paraíso.
O anúncio daquele lugar chegou até ele em um dia de trabalho caótico. Alguém colocou o panfleto entre os documentos que ele levou para casa, e a promessa de descanso em uma praia isolada lhe chamou a atenção. Poucos dias depois foi demitido. Aparentemente, não estava conseguindo ser um funcionário exemplar depois que sua esposa o deixou. Então, resolveu utilizar parte das suas economias em um passeio que o trouxesse de volta para os eixos.
Um funcionário do resort bateu à sua porta. “Boa noite, senhor Leon, posso ajudá-lo?” perguntou o rapaz com o ar solícito. “Eu não chamei ninguém” respondeu. “Observamos que o senhor está agitado", disse, forçando delicadamente a abertura da porta. “Estou ótimo” respondeu Leon, e em seguida trancou o quarto de novo. Pensou em questionar a falta de iluminação ou os gritos que cortaram a noite, mas não tinha paciência para diálogos com fantoches sorridentes. Amaldiçoou a si mesmo pela escolha da viagem, e decidiu que, assim que acordasse, voltaria para a sua maldita casa.
Assim que concluiu o pensamento, sentiu uma lufada de ar frio, como se a porta tivesse se aberto novamente. Antes que pudesse se virar para ver o que estava acontecendo, sentiu uma fisgada nas costas e tudo se apagou. Dormiu como não fazia há eras. Dormiu horas, sem interrupções, algo que sequer lembrava de como era a sensação. Na manhã seguinte, lembrava-se vagamente dos acontecimentos da noite anterior. Lembrava apenas de ter se irritado com um funcionário do hotel e de sentir falta de estar em casa. Leon se levantou já perto da hora do almoço e foi novamente para o refeitório sozinho, ao lado de alguns outros hóspedes solitários.
Ao se sentar em uma mesa vazia, uma senhora o questionou se podiam fazer a refeição juntos, já que todos os outros lugares estavam ocupados. Leon assentiu, apesar de que essa não era bem uma verdade. Era uma mulher idosa, mas com aspecto forte e saudável, que o fitava com olhos brilhantes e parecia um pouco mais vívida que as demais pessoas. Ela se apresentou como Marília, disse que estava ali para descansar longe da família e comentou que aquele era um ótimo destino para viajantes em busca de tranquilidade. Leon concordou com poucas palavras e continuou sua refeição. A senhora insistiu: "o que te trouxe ao paraíso?”. Ele avaliou a pergunta e respondeu secamente “não queria ser incomodado”. Ela riu e voltou a almoçar em silêncio.
Após alguns minutos, Marília continuou seu relato, comentando que vinha se sentindo muito sufocada, que seus filhos eram excessivamente protetores e que nada tinha sido fácil depois de perder seu marido para um câncer, há seis anos. A maneira envolvente como ela contava sua história chamou a atenção de Leon, que normalmente não parava para conversar com desconhecidos, mas se viu interessado naquela narrativa. Ela perguntou, de novo, o que tinha lhe trazido até ali e ele enfim respondeu: “são razões parecidas, até certo ponto. Meus irmãos não me deixam em paz depois do divórcio. Não tenho esposa, não tenho emprego, não tenho amigos. E ninguém me dá tranquilidade nessa droga”. Marília ouviu seu desabafo e assentiu com a cabeça. “Sei como se sente, meu amigo” ela completou.
Leon resolveu experimentar alguma das atividades em grupo à tarde. Encontrou no jardim um grupo de pintura terapêutica e se dispôs a participar, ainda que estivesse pouco à vontade com a presença de outras pessoas. Quando criança, tinha gostado muito de desenho, até pensou em seguir carreira, mas seus pais podaram seus sonhos ainda nos primeiros ramos. Quando conheceu Elisa, arriscou alguns retratos, porém nunca ficavam tão bonitos quanto ela, e acabou desistindo. Agora, tinha uma tela com números e cores correspondentes para pintar um cenário genérico de praia. Seus colegas tinham variações de cidades, florestas e figuras humanas. Não parecia seu tipo predileto de programação, mas a tranquilidade do sono restaurador e do ambiente ainda o dominavam, de modo que, para sua própria surpresa, ele se viu entretido com a atividade.
Sentia seu corpo relaxado sentado sobre a grama do jardim e a brisa refrescante do litoral. A cada pincelada pensava na aura diferente que aquele resort tinha, na maneira serena como as pessoas se comportavam e como tudo parecia perfeitamente encaixado no seu devido lugar. De repente, o torpor foi interrompido por um desentendimento entre duas hóspedes. Começou com uma esbarrando nas tintas de outra e em um instante o paraíso se tornou um inferno. As pessoas começaram a entrar em desespero em conjunto. Leon se viu atordoado a princípio, mas resolveu rapidamente partir para outro lugar longe daquela confusão. O barulho e a agitação do momento não faziam bem para ele, que andava sensível. Já havia muito disso dentro da sua própria cabeça. Assim, tentou desviar por um corredor aos fundos.
Nesse momento, sentiu um funcionário tomá-lo pelo braço. “Ei, quem você pensa que é? Me solte agora!” protestou. O homem permaneceu calado e arrastando Leon na direção oposta. “Você é surdo? Maluco?” ele insistiu, sem sucesso. Quando o rapaz o puxou com mais força, ele sentiu a raiva crescer dentro de si. E quando ele se via tomado pela raiva, não havia nada que pudesse fazê-lo parar. Leon empurrou o homem contra uma parede mais próxima e jogou o seu corpo em cima para esmagá-lo. Ele bateu com a cabeça e soltou um gemido de dor, mas não recuou ainda. Então, Leon mirou o punho no seu rosto e correu antes que pudesse sentir o sangue escorrendo entre os dedos.
Ele correu bastante. Desceu uma campina onde parecia se encerrar o jardim e continuou até chegar quase à mata fechada. Sabia que estava perto da praia porque podia ouvir o barulho das ondas, mas estava incerto sobre para onde ir. Ofegante, sentou-se em meio às árvores para pensar em um meio de fugir daquele lugar. Porém, Leon não conseguia se concentrar. Sua mente gritava.
O sangue corria em suas mãos. De repente, estava encharcado de sangue. Ele ouvia ao fundo pessoas chamando seu nome, sirenes e um choro desesperado. Talvez fosse ele que estivesse chorando. Leon fechou os olhos quando as lágrimas e as luzes começaram a ofuscar sua visão. Quando abriu novamente, estava no carro com Elisa, na última vez em que estiveram juntos. Ele estava dirigindo depressa e irritado, enquanto ela chorava baixo ao seu lado pedindo calma. Eles haviam brigado e ele não estava nada calmo. Seu nome foi a última coisa que ela disse antes de ele jogar o carro do precipício.
Leon acordou se sentindo fraco, atônito, em um quarto onde nunca esteve antes. Era todo branco, sem janelas e com macas enfileiradas. Ele estava na maca mais ao centro, recebendo algum medicamento intravenoso. Poucos instantes depois, alguém entrou no recinto e se aproximou de onde ele estava. Era Marília, vestindo um jaleco branco onde se lia “psiquiatra”. Ela lhe sorriu. Ele riu de si mesmo e voltou a dormir.
Prolongando essa viagem interestelar
Perdão pelo sumiço? Vivi um fim de semestre intenso e logo depois férias restauradoras em que eu não quis fazer nada além de descansar. Nesse meio tempo, deixei apenas alguns textos incompletos. Agora estou de volta à rotina e descobrindo como encaixar minhas pretensões de escritora nesse 2022.2.
Ainda nas férias, viajei para Pipa/RN e escrevi esse post no blog reunindo algumas dicas do que fazer por lá. É um guia sintético e honestão para quem quer viver algumas experiências diferentes, mas sem gastar rios de dinheiro.
Li esse texto da newsletter Tá Todo Mundo Tentando sobre São Paulo e achei bem legal fazer paralelos com aquele outro texto que escrevi umas duas edições atrás sobre Natal. “São Paulo não existe. É uma cidade diferente para cada uma das almas que habitam esse enorme pedaço de chão”. Eu gosto muito de saber o que as pessoas têm de pessoal a dizer sobre as cidades, além de falar o óbvio como quantas casas existem ou quais as avenidas principais.
Li outras coisas legais nesses últimos dois meses, mas checando minha caixa de salvos, não encontrei nada demais. Acho que tenho estado muito aérea para focar e me impressionar por qualquer coisa. Não tenho muito mais a dizer, ou a recomendar. E esse foi o melhor que consegui dessa vez.
Então, até a próxima aventura intergaláctica!