#13 tenha a morte como amiga
aquela história, mantenha os amigos por perto, e os inimigos mais perto ainda, etc
Para ler seu urgências.
Eu sempre tive uma relação de desafeto com a morte. Parece óbvio não gostar do tema, mas as pessoas vivem com mais serenidade quando o encaram de forma mais amistosa. Acho que comecei a me preocupar de fato quando, na adolescência, eu ia à igreja aos domingos e percebi que não me sentia parte daquele universo. Para o bem ou para o mal, a religião oferece conforto e respostas sobre muitas coisas, especialmente sobre o pós-vida. Como jovem adulta, cheguei a um acordo comigo mesma que eu iria tentar encontrar uma forma de expressar minha espiritualidade antes de abandonar totalmente esse aspecto em mim. Começo a busca procurando entendimento sobre as questões da vida, mas no fundo estou sempre procurando uma forma de explicar a morte.
Nunca vivi grandes lutos. As pessoas mais próximas a mim que morreram foram meus avós e bisavós, com quem eu convivia, porém não tinha um relacionamento muito profundo. Meus pais não gostam de falar sobre morte. Eles ainda são da geração em que as pessoas falam “CA” para não dizer o nome da doença “câncer” como se fosse uma palavra proibida, amaldiçoada. Há vários assuntos sobre os quais não se pode conversar, diversos termos que não devem ser ditos em voz alta. Eu faço piadas com meus pais sobre a morte, mas, sinceramente, também é um tema bloqueado para mim. Ainda não amadureci ao ponto de admitir que eles estão envelhecendo, e que eventualmente não estão mais comigo para ouvir minhas piadas ruins.
Embora não tenha uma crença definida, eu morro de medo de fantasmas. Não sou sensitiva, nunca avistei um vulto sequer, mesmo quando outras pessoas avistaram algo na minha frente (ufa!). Porém, a ideia de ter desencarnados vagando entre nós me arrepia. Apesar disso, eu sou uma grande fã de cemitérios públicos. Não gosto dos cemitérios modernos com seus jazigos padronizados e grama bem cuidada. Aprecio, na verdade, a profusão de cores e histórias que se acumulam nos cemitérios municipais. Eu gosto da experiência, porém, é claro, sem a morbidez e a tristeza que nos levam a esses lugares.
Acho que comecei a reparar nos cemitérios quando visitava o túmulo dos meus avós para deixar flores no Dia de Finados. O cemitério público fica cheio de flores coloridas (em geral, de plástico), e fazem um arranjo interessante com as sepulturas de formatos inusitados. Outra vez, visitei o cemitério do Alecrim, o mais antigo de Natal, e descobri que há uma ala reservada para judeus que morreram no período da Segunda Guerra. Eu sempre me entretenho pensando nas histórias das pessoas que descansam (ou definham) sob o solo dos cemitérios. Mas a ideia de pôr fim a minha história ainda me gera muita angústia.
O tema da morte voltou aos meus pensamentos hoje após ler Daytripper, uma história em quadrinhos de autoria de dois irmãos brasileiros, Fábio Moon e Gabriel Bá, que discorre sobre a beleza da vida falando justamente sobre a morte. O personagem principal é um filho de escritor famoso que também queria ser escritor, mas acabou em um trabalho como jornalista e redator de obituários. Ele encara a morte todos os dias nas páginas do jornal. No entanto, não sabe bem quando começar sua própria vida.
Histórias como a de Daytripper colocam em perspectiva o fato de que você só vai aproveitar plenamente sua vida se tiver consciência de que ela vai acabar. E ela pode mesmo acabar a qualquer momento, não importa quantos planos incompletos você deixou. Cada segundo perdido é menos uma oportunidade. Brás (o protagonista) perdeu anos da sua vida antes de ter coragem de escrever seu primeiro livro. A leitura soou quase como acusatória para mim, que digo há tempos que tenho a intenção de lançar um projeto maior que uma newsletter ou um blog. Eu poderia ter falecido na infância, quando tive minhas primeiras ideias literárias; na adolescência, deixando alguma fanfic inacabada no editor de textos, ou exatamente agora. Posso morrer agora mesmo. Porém estou viva e esse é um sinal suficiente para que eu faça algo de bom com isso.
Voltando a bell hooks (pela terceira newsletter seguida), em Tudo sobre o amor há um capítulo dedicado à morte. Ela defende que, para usufruir de uma vida plena, é preciso que nós façamos amizade com a morte, encontrando-a sem medo. Normalmente, as pessoas apenas pensam nessa possibilidade quando confrontadas de fato com o seu fim, quando há uma “segunda chance”. Para a maioria de nós, esse assunto é simplesmente tabu, inclusive o luto. Bell hooks destaca que o luto é mal visto em nossa sociedade, sobretudo porque buscamos insistentemente soluções rápidas para tudo. Os enlutados reservam sua dor ao ambiente privado e reprimem seus sentimentos, enquanto deveriam ser acolhidos, caso fôssemos mais amorosos uns com os outros.
A morte está sempre conosco, à nossa espreita, alertando que não podemos perder tempo. Bell hooks trás então os conceitos de “modo de vida correto” e “ação correta” para explicar como viver plenamente, que são parte do Caminho Óctuplo ensinado pelo budismo. Como eu disse, meu processo de aceitar o fato de que um dia eu e as pessoas que eu amo vão morrer tem passado por me conectar com alguma crença. Ainda não me encontrei espiritualmente, mas ler sobre as ideias do budismo tem me feito bem nesse sentido. É que um dos principais ensinamentos (as quatro nobres verdades) fala sobre a aceitação do sofrimento para superá-lo. É improvável que alguém faça as pazes com a morte simplesmente ignorando-a.
No final, talvez a morte seja amistosa e acolhedora como a Morte, irmã de Sandman, de Neil Gaiman. Quem sabe seja algo como representações medievais de demônios e pesadelos. Também pode não ser nada. De todo modo, é uma parte da vida que desejo acolher como todas as outras. Que nós façamos as pazes.
Prolongando essa viagem interestelar
O dia em que minha mãe envelheceu é uma série de quatro textos sobre o envelhecimento. Todos valem a pena. Os trechos que mais me marcaram foram “assim como pais urbanos desconectados da vida coletiva das aldeias são despachados para outro planeta quando têm o primeiro bebê, os filhos adultos descobrem um mundo paralelo quando seus idosos chegam na fase da dependência” e “homens, não basta aprender a dividir as tarefas com os filhos e com a casa, assumam também os cuidados com os nossos velhos!”. Sou filha única e desejo cuidar dos meus pais tão bem quanto eles cuidam de mim quando for preciso.
A marca do bom relacionamento começa com uma frase que, para mim, resume o relacionamento saudável: "relacionamento bem-sucedido é aquele onde gosto da pessoa que eu sou quando estou com a outra pessoa”. É impossível amar alguém quando você não gosta de quem você é com ela.
Companhia pra comer foi um baque para mim porque percebi que também não sei comer sozinha. Faz uns anos que preciso de companhia até para tomar banho - sempre levo um podcast comigo. Evitar o silêncio comigo mesmo sempre foi uma questão na terapia, e uma luta com a minha ansiedade.
Até a próxima aventura intergaláctica!
Estava com esse texto pronto desde ontem, mas só consegui parar agora para revisar e postar. Mas é isso, né? Sem urgências.