#12 tudo o que eu sei sobre o amor
ironicamente, abandonar o mito do amor romântico nos permite amar com muito mais intensidade. sim, esse é um especial de dia dos namorados.
Para ler sem urgências.
Há um texto escrito pelo Jonas Maria sobre a sua namorada em 2017 que gera confusão por falar do amor como ele é, sem idealizações. Tenho salvo e releio sempre que esbarro com ele porque é a declaração de amor mais honesta e bonita que já li na vida. Trata-se de enxergar a pessoa amada sem os filtros das nossas expectativas, e com isso se permitir conhecê-la de fato e amá-la ainda mais por isso, inclusive os seus defeitos. É polêmico porque muita gente não gosta de pensar em si, aos olhos do outro, de uma maneira não idealizada, como se o outro só pudesse nos amar se pensar que somos perfeitos. E também é difícil despir-se das expectativas ao se relacionar com alguém. Porém esse, para mim, é o alicerce do ato de amar.
“Brinco com a Nátaly que ela é a mulher dos meus sonhos, mas nunca foi. Nátaly não corresponde às minhas expectativas, sequer tenta, pois sabe que jamais conseguiria. Há um abismo entre quem eu (involuntariamente) queria que ela fosse e quem ela realmente é. Felizmente ela se ama e se respeita o suficiente para não tentar me agradar ou se adaptar levianamente aos meus delírios, pois de outro modo nosso relacionamento estaria fadado ao fracasso. Ná não precisa ser a pessoa dos meus sonhos ou a garota perfeita, pois eu a amo e aprendi amá-la por quem ela é. Quanto mais eu a conheço, menos ela se parece com o que eu gostaria e, numa deliciosa contradição, mais eu me apaixono por ela. Me recuso a amar uma idealização e extensão de mim, pois desse modo estaria perdendo o melhor desse relacionamento: ela” Jonas Maria.
Outro dia, escrevi sobre amor na perspectiva de bell hooks em homem-bicho e mulher-objeto. Finalizei recentemente a leitura de “Tudo sobre o amor” e não consigo parar de pensar nessa obra. Ela toma emprestada as definições do psiquiatra M. Scott Peck e do psicanalista Erich Fromm para dizer que o amor é “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. Ainda afirma que “o amor é o que o amor faz. Amar é um ato de vontade - isto é, tanto uma intenção como uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhermos amar”.
Ao ouvir pela primeira vez que o conceito de amor romântico é destrutivo, fiquei indignada, tamanho meu apego por essa representação. Então, entendi que a crítica se referia à ideia amplamente difundida na nossa sociedade de que o amor é algo involuntário, instintivo e avassalador. Também se acredita que ele acontece ligeiro, às vezes à primeira vista. Com bell hooks aprendi que o amor não é imediatista. Essa é uma percepção quebrada que aprendemos com a cultura do consumo, onde as necessidades são recompensadas rápido demais, porém tão rápido é o sentimento de satisfação.
Quando eu digo que as pessoas se apressam em falar de amor, sem reconhecer o tempo que leva para cultivá-lo, é porque sei o peso que as palavras têm, tanto para quem fala, quanto para quem ouve. Pensar o amor como uma ação, ao invés de um mero sentimento, traz consigo a responsabilidade e as consequências do seu ato. Deve haver igual comprometimento quando o assumimos. A gente não cai de amores por ninguém do nada. É normal sentir uma conexão inexplicável por alguém, mas é importante tratar esse sentimento como ele é: uma conexão. Escolhemos alimentar essa ligação para torná-la amor, mas não dá para considerá-la amor antes de senti-lo.
Sempre pensei que as pessoas confundem paixão e apego com amor. Bell hooks sintetiza essa ideia dizendo que o sentimento de atração e conexão emocional por alguém se chama “catexia”, e isso é um chamado para o amor, mas não é amor ainda. Essa confusão é prejudicial porque podemos acabar achando que há amor em muitos tipos de relação, inclusive as que maltratam, só porque existe apego. Confundimos porque aprendemos desde a infância a enxergar o amor como algo instintivo, acreditando que somos amados e amamos nossos familiares até mesmo quando eles nos fazem ter sentimentos ruins. Porém, não é assim que o amor funciona.
“A afeição é apenas um dos ingredientes do amor. Para amar verdadeiramente, devemos aprender a misturar vários ingredientes - carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta” bell hooks.
Logo no início do livro, bell hooks escancara um bocado das nossas feridas quando diz que “para a maioria das pessoas, é simplesmente ameaçador demais aceitar uma definição de amor que não nos permita mais identificar o amor em nossas famílias”. Segundo a autora, a família é nossa primeira escola do amor, mas muitos de nós simplesmente não receberam dos pais mais do que cuidado. O modelo de família nuclear e individualista que temos cultivado cada vez mais em nossa cultura é um esfera institucionalizada de poder. O patriarcado dá ao homem poder máximo sobre a casa, e à mulher poder sobre as crianças. Assim, as relações por vezes são marcadas por humilhação, abuso e negligência, ações que são diametralmente opostas ao amor.
“Pais amorosos se esforçam muito para disciplinar sem punir. Isso não significa que nunca castiguem, mas, quando precisam punir, escolhem outras alternativas, como determinar que a criança passe um tempo sozinha ou retirar algum privilégio” bell hooks.
Crianças agredidas pelos pais, moral, verbal ou fisicamente, crescem com noções distorcidas sobre o amor. Vale salientar que não punir ao educar uma criança não significa não colocar limites, porque essa também é uma forma de desamor. Quando amamos alguém, repreendemos os atos errados porque queremos que essa pessoa se torne uma versão melhor de si. Porém, se há coerção e violência, é mais provável que essa pessoa se machuque e desenvolva algum trauma, do que aprenda de fato.
Bell hooks afirma que demorou muitos anos para desapegar dos padrões aprendidos na infância que anularam sua capacidade de dar e receber amor, o que implicava, na sua vida adulta, em se relacionar com homens emocionalmente quebrados. Citando novamente suas palavras “muitos de nós escolhemos relacionamentos de afeição e carinho que nunca se tornarão amorosos porque eles parecem mais seguros. As demandas não são tão intensas quanto as do amor. O risco não é tão grande”. Amar não é seguro. No entanto, mulheres recebem apoio cultural para enfrentar esse desafio, enquanto os homens são ensinados a tratar o tema com repulsa.
“Para conhecer o amor, devemos abrir mão do nosso apego ao pensamento machista em todas as formas pelas quais ele se apresenta em nossa vida” bell hooks.
A crítica ao patriarcado permeia o discurso de hooks sobre o amor verdadeiro à medida em que expõe os impactos desse sistema sobre a educação de meninos e meninas, o que reverbera em sua idade adulta. Homens aprendem o distanciamento emocional e a desonestidade para afirmar sua masculinidade. O desejo de poder é o coração do patriarcado, e não se pode amar quando se deseja ser poderoso. Por outro lado, as mulheres aprendem a servir incondicionalmente e agir como se fossem fracas, incapazes, com o intuito de fortalecer a autoestima masculina. Essa dinâmica também expressa o desejo de poder da feminilidade patriarcal, manipulando os homens para atender às expectativas do sistema.
“Despertar para o amor só pode acontecer se nos desapegarmos da obsessão pelo poder e pela dominação” bell hooks.
Muito é ensinado às mulheres heterossexuais (ou bissexuais) sobre como “manter um homem”. Aprendemos a mentir e dissimular, dando crédito aos estereótipos machistas. Além disso, a aparente adoração altruísta e dedicação de algumas mulheres na verdade é uma maneira disfarçada de exercer poder. Penso, por exemplo, naquelas matriarcas de famílias que vemos em filmes que dedicam suas vidas a cuidar dos filhos e netos, mas na verdade estão manipulando toda a sua vida. Essa é uma forma pela qual o feminino encontra meios de adquirir poder no patriarcado. Em todo caso, nunca são atos de libertação, são sempre manobras para se encaixar nesse sistema de poder.
Bell hooks também aponta para o fenômeno do esquerdomacho. Claro que ela não se refere assim, porém acho um título adequado para o tipo de homem descrito: aquele progressista que, na era do feminismo, acredita que as mulheres merecem direitos iguais na sociedade, mas em casa ainda acham que o papel do cuidado é feminino. Ao falar de um ex-companheiro, a autora diz que “como muitos homens, ele queria uma mulher que fosse “como a mamãe”, para que ele não tivesse de fazer o trabalho de amadurecer”. Entretanto, nós não temos naturalmente maior capacidade de amar ou cuidar de alguém, somos apenas sobrecarregadas com essa tarefa.
É difícil se desvincular dos hábitos e desapegar de fantasias, porém bell hooks acredita que para ser fiel a si e se distanciar do sistemas de poder, é preciso, em primeiro lugar, ser honesto e comprometido consigo mesmo. A autoestima é o ato primordial de amor para que possamos amar de verdade as outras pessoas, pois, “ao dar amor a nós mesmos, concedemos ao nosso interior a oportunidade de ter o amor incondicional que talvez tenhamos sempre desejado receber de outra pessoa”. Hooks também aborda, nesse sentido, a sua espiritualidade, a qual não precisa estar ligada a uma religião organizada, mas faz parte do seu caminho pessoal para o amor. Como na música Principia do Emicida “Tão carnal quanto angelical / Não tá no dogma ou preso numa religião / É tão antigo quanto a eternidade / Amor é espiritualidade”.
Nós estamos excessivamente apegados a modelos distorcidos de amor. Segundo bell hooks, nosso temor ao que conhecemos por amor nos impele, inclusive, a criar conflitos desnecessários de forma a evitar criar vínculos com as outras pessoas. Ou, ainda, entramos em relações que nos desgastam simplesmente pela vontade de estar com alguém, contentando-se com apego e cuidado, sem vivenciar realmente a experiência de amar. Na construção de relacionamentos saudáveis - incluindo família, romance e amizade - é importante desvincular- se as antigas ideias, acolher as próprias feridas e deixar o coração aberto.
“Queríamos que a pessoa amada aparecesse, mas a maioria de nós não tinha realmente clareza do que fazer com ela” bell hooks.
Meu relacionamento romântico atual me inspira muito a pensar sobre o amor. Quando li a definição de bell hooks, reconheci nossa dinâmica imediatamente. Nosso amor não nasceu pronto, nós o construímos aos poucos. O momento em que nos envolvemos deu início ao processo, mas o amor surgiu em algum ponto enquanto descobrimos um ao outro e a nós mesmos. Sinto que a maior diferença deste para os meus relacionamentos anteriores é que, dessa vez, meus sentimentos não são apenas acolhidos, mas incentivados. Eu sei que sou alguém melhor desde que o conheci, e foi a vontade de amar que me fez assim. Eu o amo mais todos os dias e assim amo mais ainda quem estou me tornado junto a ele.
Não tem sido fácil construir esse amor, mas é muito prazeroso aproveitar os seus frutos. Não é exatamente um lugar livre de dor, porque amar nos transforma e toda transformação interna gera um certo sofrimento. No entanto, ele nos fortalece para vivenciar essas mudanças. É importante, no entanto, não confundir a dor do crescimento espiritual com a dor do desamor. O primeiro deixa marcas positivas e duradouras até mesmo depois que o relacionamento acaba, ao passo que o segundo traz o sentimento de vergonha e desalento que nos impede até de ser amáveis consigo mesmos. O amor que compartilhamos com alguém nem sempre é eterno, porém as transformações na alma ficam conosco para sempre.
É impossível dizer até quando eu e meu namorado vamos permanecer juntos, mas cada dificuldade que passamos nos fortalece. É difícil quando, a cada quinze dias, ele embarca em um avião para trabalhar em outro estado e nós passamos duas semanas sem a presença um do outro. É difícil quando, além disso, eu fico doente dias antes de ele embarcar, reduzindo nosso tempo juntos. Parece uma dinâmica muito custosa para algumas pessoas, e talvez eu achasse o mesmo se eu estivesse tendo essa experiência com outra pessoa, mas por ele sinto que vale a pena o esforço. Vale a pena aguentar a saudade para ter sua companhia maravilhosa de novo.
Por ele não sinto a ansiedade da paixão, mas a calmaria e força do amor. Até lembrar do seu cheiro ou ouvir a sua voz faz com que eu me sinta mais calma. Temos um trabalho mútuo contínuo para fazer bem ao outro, e isso inclui aprimorar quem somos. Fazemos o esforço, em conjunto e individual, para acolher os padrões destrutivos que desenvolvemos e tratá-los de modo a não permitir que contaminem nosso relacionamento. Às vezes - muitas vezes, na verdade - nós erramos, porém o amor é um espaço de cura e acolhimento, desde que de fato tenhamos a intenção de evoluir.
Eu poderia escrever muitas páginas sobre o amor que estamos cultivando. Decidi encerrar essa reflexão sobre amor citando alguns singelos momentos que me fizeram perceber que de fato encontrei um companheiro amoroso para compartilhar a minha vida. Primeiro, notei que ele era especial quando o vi cumprimentar amigos homens com carinho, oferecendo beijos no rosto e abraços, sem a preocupação de que o afeto quebrasse sua masculinidade. Outra vez, quando estávamos namorando há apenas dois meses, ele me acompanhou em uma pequena cirurgia e permaneceu ao meu lado me confortando da dor, sem agir como se essa fosse uma ação extraordinária. Acho incrível também os elogios não convencionais que ele faz ao meu corpo, com dizer que tenho costas bonitas ou que aprecia o modo como meu cabelo se organiza perto da orelha. Por fim, devo citar as milhares de vezes em que ele se permitiu ser vulnerável comigo, ou que ele acolheu a minha vulnerabilidade, de forma que nos sentimos verdadeiramente livres para sermos quem somos um com o outro. Não são os grandes eventos, mas os acontecimentos do cotidiano que me fazem amá-lo mais a cada dia.
Tudo o que eu sei sobre o amor eu aprendi, em primeiro lugar, com minha família amorosa, a qual descobri logo cedo ser um privilégio em meio a tantos lares disfuncionais. Depois, aprendi com meus amigos, com os quais tenho compartilhado a alegria de acolher e ser acolhida. Então, comecei meus aprendizados com meus relacionamentos românticos, tanto nos que senti amor, quanto naqueles nos quais houve simplesmente apego. Acho que todo mundo deveria ler “Tudo sobre o amor”. Resumi aqui minhas percepções, mas bell hooks vai muito além, criticando o patriarcado, o capitalismo e a supremacia branca enquanto fala de amor. Ela escancara o quão ferrada nossa sociedade está nesse livro, mas também revela uma mensagem de esperança pautada na prática do amor. Ela nos incentiva a agir com amor não apenas nos nossos relacionamentos, expandindo essa ação a todas as esferas da nossa vida. Precisamos ter ética amorosa, abandonar o niilismo tão popular no nosso tempo e transformar o mundo inteiro através do amor.
Dedico essa newsletter de Dia dos Namorados, coincidentemente a edição 12, no dia 12 de junho, a Luan Cauê, meu parceiro, meu refúgio, meu melhor amigo. É uma pena que estejamos separados (testei positivo para COVID e ele não), mas saiba que meu coração está contigo. Ama-lo é a coisa mais fácil e tranquila que existe. Que sorte a nossa que o destino (ou a coincidência) tenha cruzado os nossos caminhos. Obrigada por me ensinar tanto sobre o amor.
Até a próxima aventura intergaláctica!