#11 se essa cidade fosse gente
sobre cidades impossíveis, cidades invisíveis, cidades do passado e a cidade que eu amo
Para ler sem urgências.
Cidades têm personalidade. No fundo, todas têm algo em comum, mas cada uma do seu jeito. Natal, por exemplo, é capricorniana com ascendente em libra.
Se Natal fosse gente, de certo assumiria uma forma para cada habitante, mas ao final teria sempre o mesmo rosto. Para alguém que toma um ônibus da linha 73 em Ponta Negra em direção a Santarém, Natal seria uma alma ensolarada que surfa aos domingos, conversa com todo mundo e é sempre uma companhia cobiçada. Quem a conhece a partir da Cidade Alta, talvez a veja como uma velha fofoqueira com ares de juventude que mete o bedelho na vida de todo mundo, mas detesta que falem sobre ela. Talvez até assuma a forma de alguém famoso, conhecido por polêmicas intrigantes e relacionamentos conturbados, ou seja somente uma moça tímida com histórias monótonas.
Já me disseram que Natal seria uma daquelas filhas de militar coxinha que nutre certo saudosismo por épocas mais sombrias. Penso nela como uma bela mulher de meia idade cujo o apelido é “A Noiva do Sol”1, porque nunca se casou no papel para não perder a pensão rs. Por outro lado, vejo Natal como uma pessoa que levanta a voz e ergue suas bandeiras em atos pela democracia, caminha em seus pés cansados pela Avenida Salgado Filho sem perder o ânimo, porque entende que a maior parte de si não dispõe de tantos privilégios.
Dizem que Natal é uma cidade provinciana, um pequeno vilarejo onde todo mundo se conhece e há poucas novidades. Não acredito nessa falácia, mas é curioso como essa ideia é antiga no imaginário natalense. Na primeira década do século XX, Henrique Castriciano (poeta, político, advogado potiguar e irmão da poetisa Auta de Souza) escreveu uma série de crônicas para um jornal da época contendo suas impressões sobre a cidade e críticas à sociedade da época. Entre seus escritos, descreve Natal como um local “sem capacidades volitivas, sem órgãos de sentimento, sem vontade”.
“dificilmente se encontrará em qualquer parte atrasada do mundo uma capital assim disposta a passar a vida entre os cochichos da vizinhança e a contemplação nervanica das ruas desertas” Henrique Castriciano.
Os textos de Castriciano sobre Natal poderiam ter sido escritos por qualquer tweeteiro médio do século XXI. Ainda se discute sobre a falta de incentivos culturais na cidade, sobre a força que a fofoca tem entre os ciclos sociais natalenses e uma certa apatia que dizem nos assolar. Eu, na verdade, penso que há muita má vontade em tantas perspectivas negativas sobre Natal - e olha que estamos, de fato, mergulhados em problemas urbanos dos mais diversos tipos. Pode-se muito bem pensar nossa cidade como um lugar que, apesar das adversidades e dos discursos “modernizadores”, resiste em sua cultura, história e identidade.
Natal às vezes pode ser a filha de militar coxinha e fofoqueira que só frequenta lugares da moda e se endivida para circular com o carro mais recente, porém essa é apenas uma de suas formas. Também pode ser uma jovem de sorriso largo que vai de bicicleta tomar mate com salgado na Cidade Alta, abraçou o Hotel Reis Magos para não ser demolido (e chorou quando ele foi derrubado), frequenta o samba no Bar da Nazaré, e tem orgulho de ser nascida&criada na Zona Norte.
Pode ser que Natal também tenha a forma de um senhor que costuma comprar pescado na feira do Alecrim, um vendedor ambulante de ginga com tapioca na Praia da Redinha ou uma criança brincando de jogar bola em um campinho improvisado no bairro de Felipe Camarão. Se Natal fosse gente, seria um pouquinho de cada habitante, mas ao final teria sempre o mesmo rosto familiar que faz a gente se sentir em casa. É importante saber que “jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve", como alertou Ítalo Calvino. Minhas percepções não são uma perspectiva unânime nem para mim, que a cada dia, enxergo a cidade diferente. Porém, de alguma forma, faz sentido tentar guardar sua essência em palavras, talvez na tentativa de mantê-la vinculada a quem eu sou.
As cidades Invisíveis
Em 1990, Ítalo Calvino escreveu “As Cidades Invisíveis”, uma espécie de relatório de viagens por cidades impossíveis narrado pelo viajante veneziano Marco Polo ao imperador Kublai Khan sobre os seus vastos domínios. Em nenhum dos seus relatos Marco Polo descreve as cidades pelas medidas das suas ruas, as qualidades do comércio, e quantas casas se pode contar. São histórias sobre o espírito do lugar. É curioso porque, às vezes, não sabemos se ele está falando mesmo sobre os locais por onde viajou, sobre a nostálgica Veneza ou, até, sobre nossa própria. Calvino deixou claro seu fascínio pelo símbolo da cidade. Cada cidade tem seus próprios contornos e características, porém, sinto que há algo na essência que une todas elas.
“As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se — disse Polo. — Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser que eu, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco.”
Quando Marco Polo afirma que Zaíra “não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas” poderia estar se referindo a qualquer centro histórico, como o bairro da Ribeira, que carrega as marcas do tempo como cicatrizes. No trecho em que diz “você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo”, é possível reconhecer qualquer cidade do universo capitalista. Já em Melânia, segundo Polo, “todas as vezes que se vai à praça, encontra-se um pedaço de diálogo”, e nesse fragmento eu reflito que não apenas as cidades se parecem, como as praças são semelhantes, e as ruas também devem ser equivalentes.
“A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir.”
Marco Polo nunca veio a Natal, mas certamente seu relato teria um pouco de cada impressão que descrevi acima. Ele falaria da brisa do bar, da força do sol e da beleza que é o fim de tarde visto do Rio Potengi. Em algum momento, ele poderia contar para a Kublai Khan que somos esquisitos, chamamos todo mundo de “boy” sem restrições de gênero e temos um morro com apelido de careca. Casos nos encontrássemos, diria a ele como gosto de morar aqui e não trocaria minha cidade por nenhum outro lugar do mundo.
Prolongando essa viagem interestelar
Palavras é um texto que traz reflexões sobre os preconceitos que nossa linguagem carrega até mesmo nos temas mais inusitados, como na botânica. Não sabia, por exemplo, que a vitória-régia tem esse nome em homenagem a uma rainha da Inglaterra. O nome em guarani é irupé, e em tupi é aguapé, e agora estou achando esses bem mais interessantes.
Término, até logo, adeus fala de um jeito muito sensível, íntimo e até encorajador sobre o fim de um relacionamento. Não pude deixar de recordar a sensação dos meus términos enquanto eu lia. Acho um texto acolhedor para quem passou por isso recentemente.
Até a próxima aventura intergaláctica!
Apelido oficial da cidade porque, enfim, faz bastante calor por aqui.