#10 homem-bicho e mulher-objeto
sobre como os homens quando se sentem seguros conversam de modo violênto sobre as mulheres
Para ler sem urgências. E, dessa vez, com um tanto de raiva.
Viver em uma bolha de crenças e valores é o que me trás paz de espírito no cotidiano, porém reconheço que essa limitação pode ser bem frustrante e perigosa, porque às vezes esqueço o quão asqueroso é o mundo que habito. Na maior parte do tempo, convivo com pessoas que compartilham de opiniões e bandeiras semelhantes às minhas, como a defesa dos direitos humanos básicos - para todos os humanos - e repúdio à violência de gênero/raça. Questões que parecem o mínimo a se esperar de qualquer um, mas não são tão óbvias quando saio do meu ciclo.
Recentemente, alguém próximo a mim iniciou um novo trabalho em um ambiente com predominância masculina. Os tópicos de conversa mais recorrentes são relacionados a mulheres, sempre em uma conotação sexual ou degradante. Falam das esposas que os esperam em casa com seus filhos, das amantes que escondem das esposas, e de como qualquer ser feminino se torna um alvo em potencial. Não somos, para essas pessoas, seres humanos com capacidades, sentimentos e poder de escolha, somos apenas uma transa em potencial. Afinal, “homem só pensa em sexo” e mulher, bom, aparentemente a gente não pensa em nada.
Ao passo que a natureza feminina é utilizada como justificativa para nos oprimir, para os homens sua natureza se trata de uma desculpa para suas ações. Somos consideradas frágeis, emocionais e desequilibradas por sermos suscetíveis às alterações hormonais do ciclo menstrual; temos oportunidades de trabalho negadas pela possibilidade de dar à luz; e aprendemos a refrear nossos desejos e libido porque devemos nos resumir a uma posição passiva. Por outro lado, as ações dos homens, até as mais inescrupulosas, são validadas porque “homem é assim, é instintivo”. Homens não podem se conter ao ver uma mulher, homens não devem expressar sentimentos, homens são violentos e territorialistas, homens vão nos explorar, abusar e matar porque esse é seu instinto primitivo.
Após um tempo me entendendo como feminista, eu percebi que a nossa grande pauta é simplesmente sermos aceitas enquanto pessoas, e não como um objeto - porque é assim que os homens nos enxergam e nos influenciam a acreditar que somos. Quando uma garota é abusada, ela não é uma pessoa. Quando uma mulher trans é desrespeitada em sua identidade de gênero, ela não é uma pessoa. Quando uma mãe tem o seu corpo dilacerado durante o parto, ela não é uma pessoa. Somos só coisas, ou até menos que isso, sujeitas aos instintos masculinos e sendo reprimidas pelos nossos.
Partindo para um exemplo mais próximo do cotidiano, acredito que todo mundo conhece aquele cara que não é amigo de mulheres. Tem uma namorada, tem amigOs e é simpático com as amigas da namorada, mas não tem amizade com nenhuma delas. Como poderia? Existe aquele ditado que homens e mulheres não podem ser amigos, pois sempre haverá desejo envolvido. Isso soa como se fossemos um bocado de bichos cujo único desejo é transar com qualquer ser que se mova e respire próximo a nós, sem poder de escolha, cegos pelos nossos instintos. Não somos. É claro que as pessoas se atraem umas pelas outras, a depender da sua orientação, mas se você não consegue enxergar ninguém ao seu redor como algo além de um objeto de desejo, é provável que você tenha um problema - dos grandes.
Existem homens que não conseguem ser amigos de mulheres, a menos que se relacionem sexualmente com elas. Para eles, todas nós somos apenas vaginas ambulantes que podem ser desfrutadas a qualquer momento. E quando negamos, eles respondem com violência física ou verbal, porque não sabem lidar com a frustração de terem seus desejos negados. Esses homens não admiram mulheres. Eles não consomem conteúdos produzidos por mulheres, não querem saber o que pensam as mulheres, não validam as mulheres como seres humanos. Esses homens amam a si e aos outros homens, amam até certos objetos que possuem, mas não amam verdadeiramente os objetos-mulheres. No máximo, amam a mãe, as quais eles acreditam serem os únicos bons elementos em meio a um mundo cheio de “vagabundas”.
Em “tudo sobre o amor”, bell hooks apontam para o fato de que muitas pessoas usam do conceito de amor para caracterizar outros sentimentos menos ilustres, porque não entendem realmente o que é o amor. Hooks toma emprestado a definição dada por M. Scott Peck para dizer que o amor é “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa” sendo “um ato de vontade”, ou seja, uma ação. No amor, não é suficiente ter afeição. É preciso também carinho, reconhecimento, respeito, compromisso, confiança, honestidade e comunicação aberta - todos atos que dependem da nossa vontade. No amor, não cabe abuso, agressão, desrespeito, mentira e desconfiança. Quando esses atos existem, o amor está sendo confundido com outro sentimento.
Portanto, repito: homens que não conseguem ter respeito, admiração, identificação e carinho (não sexual) por mulheres, não podem amar nenhuma delas. Quando falo de amor, não digo apenas amor romântico, mas também de outros tipos de conexão amorosa, como a amizade. Também não falo de amar todas as mulheres, porque isso também seria nos desumanizar, retirando nossa diversidade de defeitos e qualidades. O que eu desejo é muito simples: que nós possamos ser enxergadas como pessoas dignas, não apenas como objetos sexuais ou servidoras. É o que venho pedindo há anos e, sendo bem sincera, estou exausta de repetir.
“Mas nem todo homem”.
De fato, nem todos. Como eu disse anteriormente, conheço um rapaz que trabalha em um ambiente com predominância masculina que fica horrorizado com as conversas que escuta. Mas ele é um entre centenas naquele espaço. Além disso, é muito fácil, de cara, assumir não ser machista, não compactuar com o pensamento patriarcal e tentar se defender das “feministas malvadas”. Falta autorreflexão e autocrítica. Não se trata de um ataque pessoal, é um apelo desesperado de pessoas que estão fartas de não serem reconhecidas. Se você faz sua parte… parabéns pelo mínimo.
Eu acredito que o primeiro passo para a gente ser menos preconceituoso, por exemplo, é admitir que, vivendo numa sociedade com sistemas de valores opressores, nunca vamos estar totalmente livres de preconceito. Por isso, não dá para pensar “cheguei no máximo, não tenho como avançar agora”, porque sempre vai ter mais alguma coisa a melhorar nos nossos pensamentos. Essa postura de ser perfeito só nos torna arrogantes e menos propensos a ter empatia com o próximo. Assim, a autocrítica e a escuta precisam ser constantes.
Prolongando essa viagem interestelar:
A edição da newsletter Queria Ser Grande, Mas Desisti dessa semana caiu como uma luva para o meu texto, em especial o trecho que fala sobre a insegurança dos homens diante do sucesso das mulheres. Recomendo a leitura, inclusive dos hiperlinks.
Indico também essa edição de No Recreio, que engloba tantas angústias que eu sequer saberia explicar. Acho que é sobre falta de aura, sentir-se desgastado com a internet e ter raiva do capitalismo, algo assim. Sei que me identifiquei, em especial com a parte que a autora se caracteriza como uma “tuiteira enquanto condição psíquica”.
Redescobri esse fio de recomendações literárias enquanto vasculhava meus itens salvos do twitter hoje mais cedo. São livros que abordam o tema da socialização do corpo feminino voltado para a beleza. Não li nenhum dos títulos ainda, mas alguns já entraram na minha lista de desejos.
Por hoje, é só. Estou voltando para a minha bolha.
Até a próxima aventura intergaláctica!
Obrigada pela indicação <3 adorei a edição