Para ler sem urgências.
Eu sinto pouca saudade de andar de ônibus com frequência em Natal. Como estudante de urbanismo (e também na situação de pobre lascada) seria a realização de um sonho se os serviços de transporte público funcionassem, mas o prefeito infelizmente tem deixado o que já era ruim, pior nessa gestão. Sinto falta apenas de gastar menos dinheiro com gasolina e de ouvir fofocas alheias sem querer entre uma parada e outra. Escutar a conversa de outras pessoas no ônibus sempre me rendeu boas histórias.
Lembro de que, em 2019, quando eu estagiava em um escritório do outro lado da cidade, eu pegava o 56 todos os dias na Rua Mossoró, sentava no mesmo banco próximo à janela (para ver a paisagem da via costeira) e ouvia sempre o diálogo entre duas amigas, de modo que eu até acompanhava as fofocas. Na verdade, era uma espécie de monólogo, porque uma amiga contava para a outra durante todo o trajeto de meia hora sobre suas novidades amorosas enquanto a ouvinte fazia raros comentários em concordância.
Não sei dizer se elas percebiam que eu estava atenta, porque eu tentava disfarçar (não queria correr o risco de perder o entretenimento diário). De qualquer forma, eu ouvi as histórias por semanas. Sabia que a amiga falante tinha um relacionamento conturbado com um cara que, pelo que eu entendi, não era solteiro. Ao mesmo tempo em que tinha papel de amante, também saia com outros rapazes, e cada um gerava alguma história interessante diferente. Era engraçado ouvi-la falar sobre sua vida amorosa agitada enquanto eu mesma dava raros beijos na boca. Em uma das últimas vezes que a encontrei, ela falou para a amiga que estava pensando em terminar a relação com o amante. Entretanto, não sei dizer o que houve depois, porque precisei sair do estágio e não voltei a tomar aquele ônibus.
Outra vez, dentro de um Via Praça, escutei uma senhora comentar ao telefone que não achava que o casamento da sua filha ia durar, porque ela “feminista demais” e não fazia tarefas como “lavar a louça quando o marido não quer”. Ou seja, nem sempre eu escutava algo que estava interessada em ouvir quando estava no ônibus. Quis cutucar a mulher e dizer que ela estava sendo muito otária com a própria filha, esperando que a coitada atuasse como serviçal para macho preguiçoso. Mas é claro que só respondi na minha cabeça.
Lembro que às vezes também eu era abordada por algum chato querendo puxar assunto sobre o tempo, ou alguém tentando me evangelizar. Também achava insuportável quando haviam pessoas falando em alto e bom som impropérios e preconceitos horrorosos em diálogo com outro passageiro. Apesar das controvérsias, eu adorava ouvir o que se passava na cabeça dos outros, observá-los e tirar conclusões despretensiosas sobre suas vidas.
Esse era meu exercício passivo de ouvir as histórias alheias, meu laboratório de ideias. Sinto que agora não tenho muita oportunidade de fazer isso, e essa falta me impacta bastante como escritora. A pandemia foi o auge desse sentimento porque vivi semanas em casa sem encontrar mais ninguém além dos meus pais. Por mais que eu consiga escrever a partir das minhas próprias experiências, não sou do tipo que encontra inspiração suficiente em si - até porque, convenhamos, minha vida não é tão agitada assim. É muito bom quando tenho contato com as outras pessoas e suas vivências, pois dessa forma eu expando minhas ideias, minha visão de mundo e minha empatia.
Escrever exige muita empatia, muito exercício de se colocar no lugar de outro alguém, em especial quando se trata de ficção. Senão você vai acabar sempre escrevendo autobiografias (se bem que, sendo bem honesta, conheço uma boa quantidade de escritores assim que ainda vendem um bocado rs).
Em 2015, viajei com meus pais para Curitiba porque queríamos conhecer a cidade, mas também foi um reencontro com dois amigos que se mudaram de Natal para lá, Bárbara e Rosivaldo. Lembro que no último dia que passamos juntos eu deixei minha família bem preocupada por passar muitas horas sem dar notícias (eles pensaram que eu havia fugido ou sido sequestrada). Na verdade, estávamos eu e meus amigos sentados em uma praça perto do hotel conversando bobagens e brincando de inventar histórias sobre as pessoas que passavam por nós.
Não sei explicar por que aquela tarde foi tão especial e por que foi tão divertido fazer essa brincadeira de faz-de-conta. Mas de alguma forma me marcou muito nós três apertados em um banco, falando “aquela moça brigou com o namorado, está voltando do trabalho e vai descobrir algo horrível quando voltar para casa” ou “aquele homem se chama Pedro e ele gosta de tocar trompete”.
Apesar de nesse caso a gente estar inventando informações sobre os outros, também era uma forma de observá-los, porque nós de fato prestamos atenção neles para tirar nossas conclusões. Era uma espécie de fofoca pela metade, onde a gente só via a situação sem saber o que havia por trás. O que seria o escritor se não um fofoqueiro, afinal? Contando histórias de verdade e de mentira sobre alguém, observando a vida alheia, interessado em sempre ter informações novas.
Posso até usar essa desculpa para justificar meu prazer em ouvir fofoca. Faz parte do meu exercício, sou escritora, sabe? E se eu passar para frente, posso dizer que é ficção.
Pretendo continuar escapando do transporte público natalense enquanto me for possível. Essa semana mesmo precisei voltar para casa de ônibus porque o carro aqui de casa estava ocupado (normalmente, eu pego emprestado) e minha única preocupação durante o trajeto era só não me chocar contra o vidro da janela nas paradas bruscas do motorista. Nada além da minha própria existência me chamava atenção. E, para falar a verdade, geralmente é assim, eu não fico tão atenta ao exterior quanto nas minhas lembranças parece. Normalmente não há conversas legais acontecendo. Foi uma espécie de exercício e lembrete sobre como funciona a nostalgia.
No fim das contas, talvez a escuta atenta tenha mais a ver com um estado de espírito que um lugar ou situação.
Prolongando essa viagem interestelar, não tenho nada de interessante para indicar essa semana, acredita? Só porque meu amigo disse que gostava dessa sessão. Bom, talvez VOCÊ possa me indicar uma leitura, afinal.
Até a próxima viagem intergaláctica!